SOBRE A PEÇA
Resultado de pesquisa que partiu da apropriação cênica de alguns conceitos do existencialismo filosófico e seu diálogo estrito com o Teatro do Absurdo.
Durante o processo cada ator abordou as cenas colocando o seu ponto de vista sobre algumas das questões universais do ser humano, como a busca pelo prazer e o medo da morte. Apesar do peso da temática abordada o grupo percebeu que a força do realismo exacerbado – trágico por excelência, trazia em si o cerne da comicidade.
Abandonou-se então a pretensão filosófica, ganhando liberdade para construir uma fábula simples, na qual fosse possível discutir o prazer e o medo de cada um dos atores. Era preciso ir além da filosofia para chegar à existência, a nossa existência em relação ao outro. O resultado ficou plástico, hora engraçado, hora dramático, leituras teatrais de conteúdo pessoal que apontam um caminho de urgente confrontação consigo mesmo.
Se por um lado o mote de conteúdo vem do existencialismo filosófico, por outro a construção da linguagem se inspira no cinema. Toda a estruturação dramatúrgica propõe um jogo de cenas que remete à edição cinematográfica, recorrendo à simultaneidade de acontecimentos, cortes rápidos de luz e re-significação da locação através de objetos e cenário. Além disso, o audiovisual está presente ainda na projeção de um vídeo que vai além da proposta estética e torna-se essencial para o desfecho da estória.
No sentido da linguagem teatral, a Preqaria Cia de Teatro passa do texto pronto e deslocado no tempo para a construção de sua própria dramaturgia. Confrontar-se consigo mesmo para entender melhor o mundo em que vive é ainda uma necessidade de toda a humanidade.
Sinopse
Uma festa de Cabaré onde homens solitários se divertem com prostitutas solitárias. Ou um ambiente fantástico e plastificado, onde as pessoas dançam alegremente para “iludir o tédio dos dias vazios e sempre iguais”. O cabaré é a metáfora imediata do prazer. Dançar e se divertir é uma forma angustiada de combater o vazio da vida e o terror da morte. “O que podemos fazer”? Alguém responde: -“Dançar”.
Processo de criação: “O Personagem antes da Cena”
Durante o processo de criação de “Tribunal – Quarto de Zona” foi proposto ao grupo de atores que elaborassem cenas a partir de estímulos vários que nada tinham a ver com o roteiro dramatúrgico. Por exemplo, a leitura de textos existencialistas como “A negação da morte” de Ernest Becker, “As perguntas da vida” de Fernando Savater e “O desespero humano” de Kierkegaard, entre outros; que serviram de referencial teórico para ambientação do universo existencialista. Após a leitura de cada texto os atores foram estimulados a criar cenas – a princípio individuais e depois em dupla, em trio e assim por diante – que abordassem os conceitos discutidos nos textos.
Outro processo empreendido foram exercícios em grupo de caráter ritualístico, que buscavam trazer vivências práticas dentro de alguns conceitos do existencialismo trabalhados previamente nos textos. Através de estímulos sonoros e dinâmicas corporais esperava-se que os atores experimentassem sensações de solidão, vazio e abandono; desejo, prazer e êxtase; irritação, raiva e selvageria; culpa, penitência, flagelo e morte; e assim por diante.
A partir desses estímulos os atores foram convidados, mais uma vez a criar cenas que expressassem teatralmente as sensações que vivenciaram nos exercícios.
O material resultante, tanto nas dinâmicas de rituais, quanto na leitura dos textos, foram em sua maioria, viscerais. Leituras teatrais, mas que diziam respeito à interpretação individual dos atores – a princípio racional, a partir do referencial teórico, e em seguida emocional, advindas das sensações vividas, apontando um caminho de confrontação consigo mesmo.
Por outro lado, todo esse material visceral, não tinha qualquer coesão dramatúrgica, chegando até nós como um amontoado caótico de micro cenas que apesar de dialogarem conceitualmente, não constituíam uma trama.
Neste momento foi proposto ao grupo um argumento, uma estória de amor e morte que funcionasse como o fio condutor do processo. A estória serviria como ambiente artístico receptivo, com princípio meio e fim, onde poderíamos inserir, de acordo com as necessidades do argumento proposto, aquelas cenas que a primeira vista nos pareciam contrárias e caóticas, sem coesão dramatúrgica, que o processo criativo havia gerado. Conservando as intenções as movimentações e, até mesmo a estética, e alterando as falas, essas cenas foram deslocadas de seu contexto conservando sua intensidade e servindo a nossa estória.
Se em sua proposta inicial a atriz Milena Trindade cantava e catava feijão para demonstrar seu cotidiano em busca da sobrevivência, na cena dentro do espetáculo trocávamos os feijões por moedas que sua personagem, uma prostituta, recebia como fruto do seu trabalho – era ainda a busca pela sobrevivência. Se em sua proposta inicial o ator Ronaldo Queiroz beijava o chão gritando em desespero como se estivesse nos fins de seus dias e se despedisse do mundo, em nossa montagem ele beijava a boca de outro homem conservando o tom de desespero e ainda despedindo-se, já que o homem que beija está morto. E assim por diante.
Desenvolver essa experiência nos fez refletir sobre a seguinte questão: antes mesmo de chegar à cena e dizer as palavras do personagem o personagem já existia. Já se encontrava ali elementos que lhe seriam traços determinantes.
Essa constatação fez nascer em nós o interesse de pesquisar os desdobramentos que a premissa de “O Personagem antes da Cena” pode acarretar em nossos próximos trabalhos práticos, espetáculos a serem desenvolvidos pelo grupo; mas embasados por uma pesquisa teórica de experimentos semelhantes que os grandes encenadores do teatro possam ter empreendido. Dessa pesquisa está surgindo uma dissertação de mestrado na UFMG apoiada na experimentação de cada novo trabalho da Preqaria Cia de Teatro.
ARGUMENTO
Em meio ao ambiente amorfo de pessoas desiludidas, dois sopros de vida aparecem e alteram a estrutura do lugar: uma jovem garota linda e radiante, que atinge a idade em que deve começar a se prostituir, porque em nosso mundo isso não é uma escolha, é uma “regra”. E um jovem rapaz que, seguindo a mesma regra, chega ao cabaré pela primeira vez. Ambos se apaixonam no primeiro olhar, se cortejam e se desejam no primeiro momento. Enquanto isso um homem mais velho e mais gabaritado, negocia por um alto valor a primeira noite da nova cortesã com a dona do cabaré.
Durante uma noite de festa em que a disputa pela jovem se acirra e juras de morte são feitas (do jovem para o velho) ouve-se um estampido e o rapaz cai morto ao chão. Tudo leva a crer que o homem que havia sido jurado de morte se antecipou em auto defesa, e o matou. Mas estranhamente, o motivo da disputa, a jovem cortesã acaba assumindo o crime.
O espetáculo se re-configura em um tribunal e as platéias que estavam de frente uma para outra são colocadas lateralmente, formando uma espécie de júri. O julgamento se inicia tentando entender como e porque aquela garota inofensiva matou o homem que iria tirá-la dali e leva-la ao show business. Até que um promotor de defesa aparece com uma fita de câmera de vigilância, que sob o aval do juiz é projetada.
Uma brincadeira: o vídeo foi editado durante o espetáculo e através de uma montagem preparada anteriormente o rosto de um espectador aparece no corpo que está empunhando a arma do crime. Dois “policiais” vão até a platéia e convidam o homem a se sentar no banco dos réus. Caso a pessoa da platéia se recuse a participar e ser “julgada” uma testemunha do elenco perito em imagens aponta no vídeo sinais de edição que a caracterizem como fraude. Outra pessoa do elenco é apontada como suspeito e o julgamento continua.
A idéia é fazer com que o público se sinta parte daquele universo. De alguma forma todos nos prostituímos em troca de dinheiro para que depois possamos trocar por prazer. O homem é julgado sem muitas possibilidades de defesa e condenado à morte.
O Tribunal é a metáfora da vida. A vida é um tribunal que nos condenará mais cedo ou mais tarde a pena de morte.
Ficha Técnica
Elenco: Gabriela Dominguez, Guilherme Thiago, João Valadares, Kenya Goulart (Tacy Guimarães), Luciene Bernardes (Cristiane Andrade), Milena Trindade, Raysner d’Paula, Ronaldo Queiroz.
Direção: João Valadares
Dramaturgia: João Valadares
Iluminação: Thiago Prata
Cenário: Luciene Bernardes e Luiz Dias
Figurino: Luciene Bernardes, Luiz Dias e Wallace Barros
Maquilagem: Gabriela Dominguez
Criação Audiovisual: Leonardo Souza e Vinícius Túlio
Arte Gráfica: Vinícius Souza
Trilha Sonora: João Valadares
Esse espetáculo não está mais no repertório da companhia.